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Foto do escritorConectando Sorrisos

Setembro Amarelo: devemos ou não falar sobre isso?



Certamente, ao longo desses anos e na chegada do mês de setembro, você já ouviu ou leu sobre algo relacionado ao setembro amarelo. Nas redes sociais, na escola, no trabalho ou entre conversas, o assunto sobre saúde mental tem se tornado mais comum e em alta, sobretudo, no momento atual com o advento da pandemia.


Uma coisa estamos de acordo desde já: falar sobre saúde mental sempre foi um tabu, perpassa medo, vergonha e julgamentos. Nesse sentido, olhamos a Campanha Setembro Amarelo, associamos o sofrimento psíquico das pessoas, que pode levar à morte, à importância de retirarmos o tabu sobre a temática e disparamos a cor amarela, os laços e convocação em falarmos sobre isso no mês de setembro. Assim, cá estamos! E cá estamos para perguntar: Sabemos sobre a história do Setembro Amarelo? Quais são os impasses e a importância dessa discussão? Por onde caminharmos e traçarmos pontes que apostem na produção de cuidado em saúde mental e que previnam, de fato, o suicídio?


O setembro amarelo surgiu após o suicídio de um adolescente de 17 anos, Mike Emme, que era amante do seu carro Mustang amarelo, nos Estados Unidos. Seus amigos, em homenagem a Mike, foram vestidos de amarelo e usaram fitas dessa cor com a mensagem "Se precisar, peça ajuda". A ação produziu uma grande mobilização, que extrapolou aquele espaço e tomou grandes proporções no país e no mundo. Tal proporção fez com que a Organização Mundial de Saúde (OMS) estabelecesse o dia 10 de setembro como o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. Pausa: É aqui que a virada se dá e que precisamos ajustar as nossas lentes antes mesmo de chegarmos no Brasil.


Estamos falando de prevenção, de produção de cuidado em saúde mental e a importância de uma rede de apoio até então. Mas no ajuste de lentes, é importante que encaremos a mensagem: "Se precisar, peça ajuda!", produzida num ato de dor daqueles que perderam Mike, na maneira encontrada de vivenciarem o luto, que é gentil, homenagearem o amigo e fazerem algo que, de certa forma, desse sentido àquela perda, o que gerou diversas ações de outras pessoas após esse ato. Bonito, bem intencionado, sutil e mobilizador. Lembra até aquele filme antigo "A corrente do Bem", que mobiliza, emociona e tem um final trágico. Ué, mas como assim trágico? Temos uma campanha mundial sobre o tema de maneira que as pessoas possam olhar para isso! Quando ajustamos as lentes (já fizeram exame de vista?): o estranhamento vem. A questão é: o que a gente faz com esse estranhamento acerca do "final trágico" para algo que eu achava ser maravilhoso? Mexe daqui e dali, vai, volta e ajusta ou cria uma nova lente.


"Se precisar, peça ajuda!", dizia a mensagem mobilizante. De imediato, a gente se pergunta: "Pedir a ajuda a quem?". Bingo! Produzimos uma demanda! Demanda gera dinheiro. Logo, produção de sofrimento produz lucro. Foi desse entendimento que o mercado é, sobretudo, a indústria farmacêutica (grande mercado dos EUA) capturou o ocorrido e mercantilizou o sofrimento ao criar a Campanha Setembro Amarelo, que chegou ao Brasil em 2014.


Em terras brasilianas, a campanha já chega com o símbolo ® da marca registrada da indústria farmacêutica e com o financiamento da mesma, alinhada ao Conselho Federal de Medicina e à Associação Brasileira de Psiquiatria. Pergunta: Como um grande lobby do mercado financeiro apostará em prevenção com a intenção da redução de sofrimento e, logo, do uso de medicação? Nessecaso, entendemos: é propaganda para produção de demanda. Um exemplo disso é que, em 2015, um ano depois e segundo os dados da ANVISA, o Brasil consumiu 70,8 milhões de caixas de medicação benzodiazepínica. Além de um aumento crescente do uso de medicação para insônia. Assim, nos tornamos, historicamente, o país que mais faz uso de medicação benzodiazepínico.


Se, historicamente, tornamo-nos os maiores consumidores de benzodiazepínicos do mundo, precisamos nos lembrar que, historicamente, também somos referência de modelo de saúde pública, com a criação cidadã do SUS. Não somente isso, nosso país é referência no campo de lutas, movimentos e construção (constante) de um modelo de atenção psicossocial brasileiro que veio se delineando no decorrer da década de 80 até os dias atuais, juntamente aos usuários de saúde mental e seus familiares, profissionais de saúde e a sociedade. Tais mobilizações trouxeram ao país um acúmulo de experiências interessantíssimas e potentes ao longo da década de 90 e que auxiliaram na elaboração de uma política pública que pensasse a produção de saúde mental, o cuidado em saúde mental e, sobretudo, a mudança de paradigma desse cuidado.


O objetivo aqui não é aprofundarmos nesses eventos, mas nos atentarmos ao fato: A proposta de construirmos uma rede de atenção psicossocial em saúde mental, garantida pela lei 10.216 de 2001, aposta na construção de um modelo de saúde que esteja conectado com o cuidado no cotidiano e no território de vida dessas pessoas com intuito de produzir autonomia destas. Para isso, contam com uma rede multidisciplinar e intersetorial que, sim, não negam a necessidade do uso de medicações para casos específicos, muito menos da importância do profissional psiquiatra, do médico, do psicólogo, mas que compreende que a produção de saúde mental deve ser a aposta radical de afirmação da vida. Tal afirmação, dentro dessa outra lente, traz outros elementos imprescindíveis à cena: A cultura, a arte como cuidado, a economia solidária e geração de renda, a localização de violências e combate a elas, à educação, à soberania alimentar e, sobretudo, a acesso a partir do acolhimento e articulação desses cuidados para redução das desigualdades.


O setembro amarelo não dá conta. Gostaríamos que desse conta e que ele fosse mais uma força ase somar frente a tantas pessoas mobilizadas e com boas intenções pela causa. No entanto, o mesmo se dá com o apagamento de nossas conquistas e de pautas importantes que precisamos nos responsabilizar. Para além disso: O psicólogo não dará conta, nem o psiquiatra, muito menos a medicação. É nesse sentido que devemos nos perguntar: O que faz nosso povo sofrer? O que tem provocado o aumento dos casos de suicídio num país que consome muita medicação? Como dialogarmos sobre prevenção ao suicídio sem nos descolarmos de nossa realidade no dia a dia? Como promovermos saúde no dia a dia, no fazer, em relação e nas apostas? Todos nós somos promotores de saúde.


Como exemplo disso, temos o aumento de suicídio da população negra nos últimos anos enquanto que da população branca se manteve estável. Quando nos debruçamos sobre a cartilha Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros, do Ministério da Saúde, vemos que a cada dez jovens que se suicidam, seis são pretos ou pardos. Além disso, ao afunilarmos mais esses dados, temos o dado que o jovem negro tem cinquenta por centro a mais de chance de cometer suicídio comparado aos demais jovens. Tal recorte nos demonstra a complexidade da discussão sobre a temática da saúde mental e sobre o suicídio. É urgente que, juntos, atuemos nas raízes (no sentido de radicalidade) dos problemas e retomemos à pergunta: O que nos faz sofrer e perdermos o desejo em viver? O que nos faz não vermos sentido na afirmação de que precisamos afirmar a vida? Como produzirmos sentidos de vida frente ao desemprego, à fome, às violências, ao racismo, à uma ideia fixa de masculinidade, ao machismo, à homofobia, à transfobia? Como “conectarmos sorrisos” num cenário onde as pessoas fazem fila para comerem ossos?


Prevenção ao suicídio está mais distante daideia de uma receita, de um profissional de saúde mental (psicólogo e/ou psiquiatra) isolado e muito mais próximo da ideia de “Como vamos construir um projeto de sociedade juntos”, de co-responsabilização. Precisamos nos atentar a isso porque ao esvaziarmos a discussão política, responsável e histórica da saúde mental, individualizamos o sofrimento e culpabilizamos o sujeito, além de reduzirmos o próprio conceito de saúde, de prevenção e de cuidado. A gravidade em produzirmos esse reducionismo pode nos direcionar ao final trágico: Compreendermos sofrimento psíquico e o sujeito apenas como ser biólogo, deslegitimando o caráter social, cultural, ambiental, econômico, histórico e político. Nesse caso, deslocarmos esse reducionismo, o qual é muito comum cairmos, nos promove governança desse cuidado. Ou seja, a possibilidade de trabalhadores da saúde e suas equipes articularem estratégias ampliadas, dialógica e que se esperança no encontro com parceiros.


Quando a lente se direciona à pergunta “Como vamos construir um projeto de sociedade juntos?”, uma rede de apoio ampla se coloca: são os familiares mais próximos com quem essa pessoa tem vínculo a partir do que ela compreende por família, são os amigos, é a escola, a igreja, a ONG, o profissional de saúde, o agente comunitário de saúde, que visita a casa e mora naquele bairro, é a cozinheira da escola que tem acesso àquele jovem, é a pastoral que dá o sopão e tem elementos de informação sobre a história daquele morador em situação de rua, é a feira em que se pode vender os produtos desenvolvidos nas oficinas de cuidado na rede de saúde, é a arte e, claro, os dispositivos de saúde. Um movimento em rede, semelhantes à uma teia, onde seus fios se conectam. Somos todos nós na produção de acesso, garantia de direitos para a conexão de sorrisos e esperançamento.


​Assim, ficamos com o esperançar: Que o setembro amarelo não seja produção de gatilho e perpetuação de uma via única do que seja o sujeito e saúde. Mas que se transforme na luta constante e diária por dias melhores agenciados por nossas práticas coletivas. Seguimos sem amarelar, mas sempre juntos!


Texto escrito por: Eloa Nogueira, psicóloga e mestranda em saúde coletiva. Já atuou na gestão de criação de políticas públicas de prevenção ao uso de álcool e outras drogas, já atuou na Atenção Primária à Saúde assim como no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II) na saúde mental. Atualmente, atua em consultório próprio no município de Volta Redonda e pesquisa sobre a importância da dimensão do território existencial para a produção de cuidado em saúde mental.

Fontes usadas como base do texto:

- Para ver o símbolo de marca registrada ® da Campanha Setembro Amarelo:setembroamarelo.com

- Para análise do aumento de uso das medicações:site da ANVISA, na parte de Sistema Nacional de Gerenciamento de produtos controlados (sistema fora do ar nesses dias)

- Para saber mais da política de atenção psicossocial:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm

- Cartilha sobre óbitos da população adolescente e jovem negra no Brasil: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/obitos_suicidio_adolescentes_negros_2012_2016.pdf?fbclid=IwAR1JvKQIuNZNIT6s_XKYEm6OiAUWfWH1toENITr1xUB1TjV_wlWCeA1iBIM

- A história das conquistas da saúde mental no Brasile a mudança de seu modelo assistencial frente aos desafios atuais: https://youtu.be/RnAjJONI6Oo

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